A DESCRIÇÃO DO GRUPO
A filosofia contemporânea tem sido caracterizada pelo cisma entre filósofos “analíticos” e “continentais”. Contudo, as últimas décadas têm mostrado sinais de aproximação entre essas tradições. Tal situação tem motivado um crescente interesse pelo estudo da filosofia da segunda metade do século XIX e do início do XX. O resultado de tais esforços têm sido a delimitação de uma esfera de pesquisa que, sob o título “Origens da Filosofia Contemporânea”, começa a reestudar um importante capítulo da história da filosofia recente, deixado no ostracismo em consequência da ruptura mencionada acima.
Identificar o nascimento da filosofia contemporânea implica rever criticamente ideias largamente difundidas no início da filosofia analítica e da fenomenologia. Em ambos os casos, a historiografia rigorosa tem sido substituída por “mitos de criação” que, embora relevantes para determinar a identidade que cada uma das correntes atribui a si mesma, ignoram uma teia de complexas relações sistemáticas e históricas.
A filosofia analítica teria surgido na Inglaterra, como uma reação à versão britânica do idealismo hegeliano. Este teria surgido por meio de Russell e Moore, que incorporaram à sua reflexão os avanços lógicos realizados por Frege. Analogamente, a fenomenologia seria uma criação extemporânea de Husserl, motivada pelas reflexões de Brentano sobre intencionalidade e pela crítica de Frege ao psicologismo em sua primeira obra sobre os fundamentos da aritmética.
Ambos os mitos mascaram os verdadeiros motivos e autores envolvidos em um processo que não foi obra de indivíduos isolados, mas de inúmeros pensadores desde o começo do século XIX. Hoje, já não se pode mais ignorar a variedade de temas e problemas envolvidos na gestação das duas correntes e ainda assim apresentar, numa narrativa linear, uma história complexa, pluridimensional e ainda não suficientemente conhecida. Embora desde a década de 1950 vários autores tenham buscado resgatar as afinidades existentes entre as motivações de Frege e as de Husserl, o trabalho de compreender como essas motivações levaram à construção daquilo que é a filosofia contemporânea ainda é uma necessidade.
A revisão de tais abordagens simplistas exige uma releitura de toda a filosofia do século XIX, propondo-se uma história da filosofia propriamente historiográfica e propriamente filosófica, em contraposição a uma visão romanticamente idealizada.
Essa visão romântica interpreta a filosofia do século XIX como uma superação heroica dos impasses do Iluminismo, após Kant, feita através de alguns nomes isolados como Nietzsche, Marx e Kierkegaard. Porém, ela é equivocada como história, como filosofia e como história da filosofia, pois ignora a produção filosófica do período. Os problemas fundamentais permanecem nesse modelo em última instância não respondidos: quando surge e o que caracteriza a filosofia contemporânea? Ou, ainda, quando e por que “terminaram” as filosofias propriamente modernas?
O estudo desenvolvido pelo Grupo tem como objetivo reanalisar a filosofia do período. Tal reanálise traz mudanças no cenário filosófico, com a incorporação de inúmeros autores que ainda não foram profundamente estudados, seja como pensadores com ideias originais, seja como atores essenciais em uma transição filosófica que ocorreu envolvendo tradição e ruptura. Autores como Stuart Mill, Bolzano, Herbart, Trendelenburg, Lotze, Brentano, Marty, Stumpf, Fischer, Dilthey, Schleiermacher, Cohen, Natorp, Windelband e Rickert, ainda precisam ser incorporados de modo apropriado no desenvolvimento das origens da filosofia contemporânea e relacionados entre si.
Por fim, essa releitura implica uma mudança de foco e de problemas na compreensão deste período da filosofia, que passa pela identificação e reinterpretação de temas de epistemologia, de lógica, de filosofia da linguagem e de metafísica, que permitem compreender quão plural é a filosofia contemporânea. A forma temática da pesquisa aparenta ser dispersa em razão dos numerosos autores. Contudo, as questões por eles levantadas são recorrentes – reino da objetividade não real, antipsicologismo, representações sem objeto, termos sem referência, entre outros.
O ponto de partida e, portanto, pressuposto, é a filosofia transcendental. Em suma, a filosofia analítica e a fenomenologia hermenêutica surgem de um mesmo movimento de ideais, cujas raízes estão na filosofia de língua alemã pós Hegel. Este movimento deve ter seu perfil próprio bem delineado, além das já estabelecidas e bem estudadas reações antirracionalistas, positivistas e hegelianas de esquerda e direita.
O objetivo do grupo é, portanto, estudar e estabelecer as relações entre filosofia analítica e filosofia fenomenológico-hermenêutica no processo de sua formação sobre a perspectiva do estabelecimento das suas raízes comuns, assim como do momento de seu isolamento recíproco. A hipótese de trabalho é que filosofia analítica e fenomenológico-hermenêutica representam, do ponto de vista da história da filosofia, e não obstante todas as suas inegáveis diferenças, um comum “turn” que pode ser caracterizado como o deslocamento do conceito de validade (Geltung) para o conceito de sentido ou significação (Sinn, Bedeutung). A tese da existência de uma virada sistemática da mesma natureza implica e se funda na tese, puramente histórico-filosófica, de uma origem comum cujo processo remete a uma quarta linha de desenvolvimento pós-Hegel já mencionada. É a partir da dupla constatação efetuada que se deve compreender o processo de isolamento das tradições no século XX, assim como o eventual destino da mesma, do qual, em definitivo, depende o destino da própria filosofia como um todo.